Memória e emoção: Por que traumas deixam marcas e lembranças são reconstruídas

Bruno Marinho de Sousa

Memória não é um filme, é um quebra‑cabeça em constante mudança

Se você nunca parou para pensar, ou nunca leu sobre memória, pode achar que a memória funciona como uma fotografia ou um filme arquivado na nossa cabeça. Mas não é bem assim…

Tanto a Psicologia quanto as Neurociências mostraram e mostram que a Memória não é um arquivo em foto ou vídeo que simplesmente acessamos e olhamos. Na verdade, a Memória é um processo ativo e bem criativo. A cada vez que nos lembramos de algo, nosso cérebro reconstrói a lembrança a partir de pistas e fragmentos, de pedaços de memórias. Aqui ainda se acrescentam as nossas expectativas e novas informações sobre o evento. Ficou difícil?

Seria assim: quando você vai lembrar da primeira vez que viu uma pessoa, o que aparece na sua mente não é uma foto ou uma gravação fiel do momento. O que surge é uma reconstrução feita de pedaços de memórias distribuídas no cérebro. Quando esses pedaços são ativados, a lembrança é organizada em uma um imagem mental coesa e coerente. Mas não é idêntica ao evento de ver a pessoa pela primeira vez.

E se não bastasse, a intenção ao lembrar, nosso emocional na hora de ver a pessoa e na hora de lembrar, além de novas informações sobre a pessoa vão influenciar como essa lembrança será reconstruída. Ou seja, é um processo que parece simples, como ver um filme na cabeça, mas na verdade ele é bem complexo, ativo e criativo.

E essa perspectiva da memória reconstrutiva explica por que testemunhas de um mesmo acidente contam histórias diferentes e por que, às vezes, juramos que algo aconteceu de um jeito que jamais aconteceu.

Foto por Suzy Hazelwood em Pexels.com

Como armazenamos experiências?

O cérebro utiliza sistemas distintos para processar informações. A memória de trabalho é um “espaço de trabalho” mental que manipula temporariamente o que estamos fazendo (por exemplo, fazer uma conta mental). De maneira bem grosseira, seria como a memória RAM do computador ou celular. Mas com a diferença que a nossa não tem upgrade.

Quando prestamos atenção e nos envolvemos com algo, esse conteúdo pode ser transferido para a memória de longo prazo, onde ficam fatos, habilidades e histórias pessoais.

Dentro da Memória de Longo Prazo existem memórias explícitaso quê (lembrar do aniversário de alguém) e implícitascomo (como saber andar de bicicleta). A passagem de um sistema a outro depende de fatores como atenção, repetição e, especialmente, do impacto emocional.

E se acompanhou o meu raciocínio até agora, então o que entendemos por Memória seria a Memória de Longo Prazo.

Por que emoções gravam lembranças mais fortes?

As experiências com maior carga emocional, sejam positivas (um elogio inesperado) ou negativas (um susto), desencadeiam a liberação de hormônios, como adrenalina e cortisol. Eles ativam a amígdala, região do cérebro especializada em identificar estímulos com carga emocional e atribuir valor a eles. A amígdala “conversa” com o hipocampo, estrutura responsável por consolidar Memórias de Longo Prazo. Ou seja, mais carga emocional, mais conversa entre entre amígdala e hipocampo.

Essa comunicação explica por que lembranças carregadas de emoção ficam mais nítidas, mais fáceis de lembrar e duram mais tempo. E a danada da amígdala também envia sinais ao Sistema Nervoso Autônomo, que pode provocar taquicardia, respiração rápida, músculos tensos.

Isso reforça no cérebro a sensação de que “isso é importante”. Estudos mostram que, durante experiências emocionalmente intensas, hormônios do estresse reforçam a comunicação entre amígdala e hipocampo, aumentando a consolidação da memória.

No texto que escrevi, “Estou seguro? Como seu cérebro processa o perigo“, eu explico como a amígdala associa rapidamente estímulos a respostas emocionais e aciona o hipocampo para registrar o contexto de uma situação. Essa associação tem um fator de sobrevivência muito forte, uma vez que algumas coisas talvez teremos apenas uma chance pra aprender.

E isso vale para momentos de medo, como quase ser atropelado, mas também para experiências prazerosas. E em outro texto, explico que até mesmo na leitura o processo ocorre, pois envolve atenção, memória e amígdala enquanto estamos ali envolvidos com a história.

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Foto por Magda Ehlers em Pexels.com

Quando a emoção vira trauma

Uma ponto importante das memórias são os traumas que temos. Trauma não é apenas “passar por algo ruim”, é a experiência de um evento ou série de eventos que quebram a sensação de segurança, deixando a pessoa com emoções e lembranças que geram sofrimento em algum nível, que não desaparecem com o tempo.

Um trauma pode ter sido causado por um acidente, uma agressão, uma perda, um abuso ou mesmo uma situação de estresse prolongado. O impacto depende tanto do acontecimento quanto da forma como ele é vivenciado.

Durante um evento traumático, a amígdala entra em estado de alerta máximo, gravando cada detalhe como vital para a sobrevivência, enquanto o corpo libera hormônios do estresse em grande quantidade. Por isso sons, cheiros ou locais associados ao trauma tornam‑se gatilhos (ficam condicionados). Quando algo agora no presente se parece com a experiência inicial, o cérebro pode reviver sensações intensas, como se o perigo ainda estivesse presente.

Voltando a explicação da memória ser feita de “pedaços”, então o trauma gera muito pedaços que ficam mais carregados emocionalmente…

O trauma, grosseiramente falando, pode ser descrito como uma “pergunta” contínua da amígdala: “estou seguro?”, que fica marcada por memórias de perigo e, sem intervenção adequada, continua disparando o alarme mesmo após o fim da ameaça. É por isso que sobreviventes de eventos traumáticos podem apresentar flashbacks, pesadelos e hipervigilância mesmo anos depois.

Memórias são reconstruídas — e isso ajuda na terapia

A ideia de que a memória é um quebra‑cabeça de pedaços de memória, não um filme, tem implicações terapêuticas importantes. Se o cérebro reconstitui as lembranças a cada vez, então a forma como relembramos pode ser modificada. Ou, usando um nome mais bonito, ressignificadas. Algumas técnicas utilizadas em Psicoterapia aproveitam essa plasticidade do cérebro:

  • Exposição gradual: em tratamentos de Transtorno do Estresse Pós‑Traumático (TEPT) e fobias, o cliente/paciente revisita a lembrança traumática em um ambiente seguro – consultório, permitindo que o cérebro associe o evento a uma sensação de proteção e reescreva, ressignifique, a memória. Isso reduz a reatividade da amígdala e fortalece o Córtex Pré-Frontal no controle das emoções.
  • Reestruturação cognitiva: a Terapia Cognitivo‑Comportamental ajuda a identificar interpretações automáticas (“sou incompetente”, “vou fracassar”) e substituí-las por explicações mais equilibradas. Ao mudar a narrativa, transformamos a emoção associada e, portanto, a forma como a experiência é reconstruída.
  • Aceitação e Mindfulness: práticas de atenção plena ensinam a observar pensamentos e emoções sem se fundir a eles. Isso diminui a reatividade da amígdala e melhora a regulação emocional, facilitando quebrar a associação emocional com as memórias com carga emocional negativa.
  • Resgate de lembranças positivas: registrar motivos de gratidão ou relembrar conquistas contrabalança o viés negativo do cérebro, fortalecendo memórias prazerosas e diluindo o impacto de eventos difíceis. Seria algo como trabalhar Resiliência também.

Saindo um pouco de memórias com carga emocional negativa e traumas, a associação entre memórias e emoções também afeta nossa Tomada de Decisões. António Damásio levantou a hipótese do marcador somático, em que emoções e memórias corporais orientam nossas escolhas e ajudam a filtrar as possíveis alternativas. Assim, se compreendermos nossas emoções e como o cérebro usa experiências passadas para orientar o futuro, podemos treinar respostas mais flexíveis e alinhadas com nossos valores.

Conclusão: traumas deixam marcas, mas memórias podem ser ressignificadas

Traumas tornam‑se memórias fortes porque o cérebro prioriza experiências emocionais. É questão de sobrevivência. A amígdala registra rapidamente estímulos emotivos e, com o hipocampo, consolida a lembrança, enquanto hormônios do estresse reforçam essa conexão (Simply Psychology, Limbic system; PubMed, Effect of emotions on learning, memory and disorders).

Entretanto, a memória é dinâmica: quando recordamos, reconstruímos. Esse fato abre caminho para a mudança, especialmente com a Psicoterapia. Ao revisitar memórias dolorosas com apoio terapêutico, modificamos as emoções que as acompanham e escrevemos uma nova versão da história. Em vez de ficar presos a um filme eterno, podemos reorganizar as peças do quebra‑cabeça e seguir em frente.


Referências

  • American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5 (5ª ed., tradução). Porto Alegre: Artmed.
  • Baddeley, A. D. (2013). Essentials of Human Memory. Psychology Press.
  • Gazzaniga, M. S., Ivry, R. B., & Mangun, G. R. (2019). Cognitive Neuroscience: The Biology of the Mind (5th ed.). New York: W.W. Norton.
  • Loftus, E. F. (2005). Planting misinformation in the human mind: A 30-year investigation of the malleability of memory. Learning & Memory, 12(4), 361–366. https://doi.org/10.1101/lm.94705

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